terça-feira, 21 de maio de 2013

Acordei doente mental: A quinta edição da “Bíblia da Psiquiatria”, o DSM-5, transformou numa “anormalidade” ser “normal”


Por Eliane Brum



A poderosa American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA) lançou neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da Psiquiatria”: o DSM-5. E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. Está cada vez mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual. Se uma pesquisa já mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo menos um transtorno psiquiátrico durante a vida, alguns críticos renomados desta quinta edição do manual têm afirmado que agora o número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim poderemos chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito perigoso: a psiquiatria conseguiria a façanha de transformar a “normalidade” em “anormalidade”. O “normal” seria ser “anormal”.





A nova edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de 300 patologias, distribuídas por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com desconto) no anúncio de pré-venda no site da Amazon. Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das novas modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho quase todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela dificuldade persistente de se desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de seu valor real. Sou assolada por uma enorme dificuldade de botar coisas fora, de bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a sapatos imprestáveis para o uso, o que resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento. Remédio pra mim. “Transtorno Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM mais severa. Culpada. Qualquer um que convive comigo está agora autorizado a me chamar de louca nas duas semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida num período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante três meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo feijão, quando chego a cinco ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não ter dúvida, devoro de uma a duas latas de leite condensado por semana, em menos de duas horas, há décadas, enquanto leio um livro igualmente delicioso, num ritual que eu chamava de “momento de felicidade absoluta”, mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença mental. Em vez de leite condensado, remédio pra mim. Identifiquei outras anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante, para que os transtornos psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro.

Há uma novidade mais interessante do que as doenças recém inventadas pela nova “Bíblia”. Seu lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se sempre houve uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte de psicólogos e psicanalistas, a quinta edição tem sido atacada com mais ferocidade justamente por quem costumava não só defender o manual, como participar de sua elaboração. Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana estão, digamos, saltando do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em parte pelos bilhões de dólares da indústria farmacêutica, é legítimo perguntar: perceberam que há abusos e estão fazendo uma “mea culpa” sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está adernando e querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de poder em que os participantes das edições anteriores foram derrotados por outro grupo, ou tudo isso junto e mais alguma coisa?



Não conheço os labirintos da APA para alcançar a resposta, mas acredito que vale a pena ficarmos atentos aos próximos capítulos. Por um motivo acima de qualquer suspeita: o DSM influencia não só a saúde mental nos Estados Unidos, mas é o manual utilizado pelos médicos em praticamente todos os países, pelo menos os ocidentais, incluindo o Brasil. É também usado como referência no sistema de classificação de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). É, portanto, o que define o que é ser “anormal” em nossa época – e este é um enorme poder. Vale a pena sublinhar com tinta bem forte que, para cada nova patologia, abre-se um novo mercado para a indústria farmacêutica. Esta, sim, nunca foi tão feliz – e saudável.





O crítico mais barulhento do DSM-5 parece ser o psiquiatra Allen Frances, que, vejam só, foi o coordenador da quarta edição do manual, lançada em 1994. Professor emérito da Universidade de Duke, ele tem um blog no Huffington Post que praticamente usa apenas para detonar a nova Bíblia da Psiquiatria. Quando a versão final do manual foi aprovada, enumerou o que considera as dez piores mudanças da quinta edição, num texto iniciado com a seguinte frase: “Esse é o momento mais triste nos meus 45 anos de carreira de estudo, prática e ensino da psiquiatria”. Em carta ao The New York Times, afirmou: “As fronteiras da psiquiatria continuam a se expandir, a esfera do normal está encolhendo”.





Entre suas críticas mais contundentes está o fato de o DSM-5 ter transformado o que chamou de “birra infantil” em doença mental. A nova patologia é chamada de “Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor” e atingiria crianças e adolescentes que apresentassem episódios frequentes de irritabilidade e descontrole emocional. No que se refere à patologização da infância, o comentário mais incisivo de Allen Frances talvez seja este: “Nós não temos ideia de como esses novos diagnósticos não testados irão influenciar no dia a dia da prática médica, mas meu medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o já excessivo e inapropriado uso de medicação em crianças. Durante as duas últimas décadas, a psiquiatria infantil já provocou três modismos — triplicou o Transtorno de Déficit de Atenção, aumentou em mais de 20 vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o transtorno bipolar na infância. Esse campo deveria sentir-se constrangido por esse currículo lamentável e deveria engajar-se agora na tarefa crucial de educar os profissionais e o público sobre a dificuldade de diagnosticar as crianças com precisão e sobre os riscos de medicá-las em excesso. O DSM-5 não deveria adicionar um novo transtorno com o potencial de resultar em um novo modismo e no uso ainda mais inapropriado de medicamentos em crianças vulneráveis".





A epidemia de doenças como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) tem mobilizado gestores de saúde pública, assustados com o excesso de diagnósticos e a suspeita de uso abusivo de drogas como Ritalina, inclusive no Brasil. E motivado algumas retratações por parte de psiquiatras que fizeram seu nome difundindo a doença. Uma reportagem do The New York Times sobre o tema conta que o psiquiatra Ned Hallowell, autor de best-sellers sobre TDAH, hoje arrepende-se de dizer aos pais que medicamentos como Adderall e outros eram “mais seguros que Aspirina”. Hallowell, agora mais comedido, afirma: “Arrependo-me da analogia e não direi isso novamente”. E acrescenta: “Agora é o momento de chamar a atenção para os perigos que podem estar associados a diagnósticos displicentes. Nós temos crianças lá fora usando essas drogas como anabolizantes mentais – isso é perigoso e eu odeio pensar que desempenhei um papel na criação desse problema”. No DSM-5, a idade limite para o aparecimento dos primeiros sintomas de TDAH foi esticada dos 7 anos, determinados na versão anterior, para 12 anos, aumentando o temor de uma “hiperinflação de diagnósticos”.





Pensar sobre a controvérsia gerada pelo nova “Bíblia da Psiquiatria” é pensar sobre algumas construções constitutivas do período histórico que vivemos. Construções culturais que dizem quem somos nós, os homens e mulheres dessa época. A começar pelo fato de darmos a um grupo de psiquiatras o poder – incomensurável – de definir o que é ser “normal”. E assim interferir direta e indiretamente na vida de todos, assim como nas políticas governamentais de saúde pública, com consequências e implicações que ainda precisam ser muito melhor analisadas e compreendidas. Sem esquecer, em nenhum momento sequer, que a definição das doenças mentais está intrinsicamente ligada a uma das indústrias mais lucrativas do mundo atual.





Parte dos organizadores não gosta que o manual seja chamado de “Bíblia”. Mas, de fato, é o que ele tem sido, na medida em que uma parcela significativa dos psiquiatras do mundo ocidental trata os verbetes como dogmas, alterando a vida de milhões de pessoas a partir do que não deixa de ser um tipo de crença. Talvez seja em parte por isso que o diretor do National Institute of Mental Health (Instituto Nacional de Saúde Mental – NIMH), possivelmente a maior organização de pesquisa em saúde mental do mundo, tenha anunciado o distanciamento da instituição das categorias do DSM-5. Thomas Insel escreveu em seu blog que o DSM não é uma Bíblia, mas no máximo um “dicionário”: “A fraqueza (do DSM) é sua falta de fundamentação. Seus diagnósticos são baseados no consenso sobre grupos de sintomas clínicos, não em qualquer avaliação objetiva em laboratório. (...) Os pacientes com doenças mentais merecem algo melhor”. O NIMH iniciou um projeto para a criação de um novo sistema de classificação, incorporando investigação genética, imagens, ciência cognitiva e “outros níveis de informação” – o que também deve gerar controvérsias.





A polêmica em torno do DSM-5 é uma boa notícia. E torço para que seja apenas o início de um debate sério e profundo, que vá muito além da medicina, da psicologia e da ciência. “Há pelo menos 20 anos tem se tratado como doença mental quase todo tipo de comportamento ou sentimento humano”, disse a psicóloga Paula Caplan à BBC Brasil. Ela afirma ter participado por dois anos da elaboração da edição anterior do manual, antes de abandoná-la por razões “éticas e profissionais”, assim como por ter testemunhado “distorções em pesquisas”. Escreveu um livro com o seguinte título: “Eles dizem que você é louco: como os psiquiatras mais poderosos do mundo decidem quem é normal”.





A vida tornou-se uma patologia. E tudo o que é da vida parece ter virado sintoma de uma doença mental. Talvez o exemplo mais emblemático da quinta edição do manual seja a forma de olhar para o luto. Agora, quem perder alguém que ama pode receber um diagnóstico de depressão. Se a tristeza e outros sentimentos persistirem por mais de duas semanas, há chances de que um médico passe a tratá-los como sintomas e faça do luto um transtorno mental. Em vez de elaborar a perda – com espaço para vivê-la e para, no tempo de cada um, dar um lugar para essa falta que permita seguir vivendo –, a pessoa terá sua dor silenciada com drogas. É preciso se espantar – e se espantar muito.





Vale a pena olhar pelo avesso: quem são essas pessoas que acham que o “normal” é superar a perda de uma mãe, de um pai, de um filho, de um companheiro rapidamente? Que tipo de ser humano consegue essa proeza? Quem seríamos nós se precisássemos de apenas duas semanas para elaborar a dor por algo dessa magnitude? Talvez o DSM-5 diga mais dos psiquiatras que o organizaram do que dos pacientes.





Há ainda mais uma consequência cruel, que pode provocar muito sofrimento. Ao transformar o que é da vida em doença mental, os defensores dessa abordagem estão desamparando as pessoas que realmente precisam da sua ajuda. Aquelas que efetivamente podem ser beneficiadas por tratamento e por medicamentos. Se quase tudo é patologia, torna-se cada vez mais difícil saber o que é, de fato, patologia. Por sorte, há psiquiatras éticos e competentes que agem com consciência em seus consultórios. Mas sempre foi difícil em qualquer área distinguir-se da manada – e mais ainda nesta área, que envolve o assédio sedutor, lucrativo e persistente dos laboratórios.





Se as consequências não fossem tão nefastas, seria até interessante. Ao considerar que quase tudo é “anormal”, os organizadores do manual poderiam estar chegando a uma concepção filosófica bem libertadora. A de que, como diria Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. E não é mesmo, o que não significa que seja doente mental por isso e tenha de se tornar um viciado em drogas legais para ser aceito. Só se pode compreender as escolhas de alguém a partir do sentido que as pessoas dão às suas escolhas. E não há dois sentidos iguais para a mesma escolha, na medida em que não existem duas pessoas iguais. A beleza do humano é que aquilo que nos une é justamente a diferença. Somos iguais porque somos diferentes.





Esse debate não pertence apenas à medicina, à psicologia e à ciência, ou mesmo à economia e à política. É preciso quebrar os monopólios sobre essa discussão, para que se torne um debate no âmbito abrangente da cultura. É de compreender quem somos e como chegamos até aqui que se trata. E também de quem queremos ser. A definição do que é “normal” e “anormal” – ou a definição de que é preciso ter uma definição – é uma construção cultural. E nos envolve a todos. Que cada vez mais as definições sobre normalidade/anormalidade sejam monopólios da psiquiatria e uma fonte bilionária de lucros para a indústria farmacêutica é um dado dos mais relevantes – mas está longe de ser tudo.





E não, eu não acordei doente mental. Só teria acordado se permitisse a uma Bíblia – e a pastores de jaleco – determinar os sentidos que construo para a minha vida.







Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/05/acordei-doente-mental.html



segunda-feira, 6 de maio de 2013

Internação Compulsória : O Debate é Fundamental !

Ministra Gleisi apoia internação compulsória de dependentes


Enviado por luisnassif, seg, 06/05/2013 - 11:15



Por Gunter Zibell - SP

Do O Globo



Gleisi Hoffmann apoia internação involuntária de dependentes químicos



‘Não podemos nos apegar a polêmicas que não estão embasadas na realidade’, diz ela



Vinicius Sassine



BRASÍLIA — No Palácio do Planalto, o comando das negociações sobre o projeto de lei que prevê internações involuntárias de dependentes de drogas foi assumido pela ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann. Também é papel da ministra cobrar dos Ministérios da Justiça e da Saúde a liberação de R$ 230 milhões para comunidades terapêuticas, entidades de cunho religioso que ganham força no projeto de lei prestes a ser votado no plenário da Câmara – a previsão é de votação na próxima quarta, 8. Em entrevista ao GLOBO, Gleisi disse que o governo como um todo é favorável à internação involuntária e que a sociedade cobra estrutura para esse tipo de atendimento. “Não podemos nos apegar a polêmicas que não estão embasadas na realidade”, diz a ministra. Ela defendeu as comunidades terapêuticas – inclusive o viés religioso empregado na terapia – e disse ser contrária à descriminalização do uso de drogas. “Pode ser uma solução simplista.” A seguir, os principais trechos da entrevista:



O cerne do projeto de lei a ser votado na Câmara é a internação involuntária. Na mesa de negociações, o governo concordou. A presidente Dilma Rousseff e a senhora são favoráveis?



Já existe previsão legal de modalidades de internação, na Lei Antimanicomial, de 2001. O governo acata a lei e tem de dar condições para que seja cumprida. O relator da matéria (deputado Givaldo Carimbão, do PSB de Alagoas) quis que essas modalidades de internação também ficassem claras no projeto que trata dos usuários de drogas. Como repete a lei, não temos objeção. Na Lei Antimanicomial, qualquer um pode encaminhar a pessoa ao médico e solicitar a internação involuntária. Na proposta do relator, seria a família ou qualquer servidor público. Pedimos que permanecesse clara a possibilidade da família e que qualificássemos o servidor público responsável por encaminhamentos, que fosse um servidor com atuação em saúde ou assistência social, para não possibilitar que servidores da área de segurança pudessem fazer isso e caracterizar uma repressão. Temos muito cuidado com isso. O relator concordou e achamos que esse texto cumpre o seu objetivo. A pessoa pode procurar sozinha um atendimento, ou a família, sempre sob avaliação médica. O médico dá o laudo final.



A internação involuntária desperta bastante crítica, dentro do próprio governo. A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) manifestou em nota técnica preocupação com internações indiscriminadas, mesma crítica de técnicos do Ministério da Saúde.



Essa construção foi resultado da participação de todos os órgãos de governo. Estiveram aqui o secretário nacional de Saúde, o ministro (da Saúde, Alexandre) Padilha, o ministro (da Justiça) José Eduardo (Cardozo), a Senad. Em nenhum momento, na mesa de discussão, esse assunto foi levantado. Todos concordaram com a visão de ser a família, um representante da saúde, da assistência social (a pedir a internação) e inclusive disseram que isso representa um avanço em relação à Lei Antimanicomial. Não podemos nos apegar a polêmicas que não estão embasadas na realidade. Hoje temos dificuldade de fazer um tratamento para um usuário de drogas. O que a sociedade tem reivindicado é exatamente que a gente tenha uma estrutura para poder dispor esse tratamento. Falar de internações indiscriminadas não tem aderência na realidade.



Outro ponto polêmico é a destinação de dinheiro público para as comunidades terapêuticas. São R$ 130 milhões pela Senad e R$ 100 milhões pelo Ministério da Saúde. A senhora acha que os editais devem ser modificados para o dinheiro ser liberado mais rapidamente?



A Senad trouxe para a mesa de discussões a importância de parcerias com as comunidades. Elas fazem um trabalho que o Estado não consegue fazer, de acolhimento, de atendimento às famílias. O governo entendeu que era importante, eu também pessoalmente considerei importante. Nunca pretendemos, enquanto Estado, enquanto governo, ser donos da verdade sobre esse assunto. Quando iniciamos o projeto, já conhecíamos as polêmicas, os debates, mas apostamos que tínhamos mais convergência do que discórdia. A grande convergência é que estamos diante de um assunto que amedronta a sociedade brasileira, traz desgraça a muitas famílias e pessoas. Tudo é importante nessa luta e por isso consideramos a participação das comunidades terapêuticas. Comunidades que nunca foram vistas por nós como equipamentos de saúde podem ter uma ação por meio de projetos.



Existe uma diferenciação das comunidades mais clínicas e das que fazem apenas acolhimento?



Exatamente. A partir daí vimos a dificuldade da Saúde em encaminhar uma ação com essas comunidades de acolhimento, que são importantes no processo. Depois do tratamento intensivo de saúde, elas têm o objetivo de fazer a reinserção social e não se confundem com internação ou tratamento. O papel das comunidades é apoiar o usuário a se ver livre das drogas. É uma ajuda. O acolhimento será sempre voluntário. O usuário define sua permanência.



A senhora entende que o viés religioso das entidades não é um problema? Seria um recurso a mais na terapia?



Nem todas as comunidades são religiosas e muitas professam fés diferenciadas. Há comunidades ligadas à Igreja Católica, a igrejas evangélicas, espíritas. Ser religiosa não pode ser visto como um impeditivo. Vivemos num país religioso, a grande maioria da população professa uma fé. OEstado é laico, não pode optar por nenhuma fé, mas isso não significa que ele tenha de desrespeitar a opção das pessoas. Temos de respeitar: se a pessoa foi de forma voluntária a uma comunidade e acha que está fazendo bem a ela, se essa comunidade está seguindo as regras do edital, não cabe ao Estado fazer tutela.



A falta de estrutura dessas comunidades vem impedindo a liberação de dinheiro público.



.Isso é muito novo, nunca houve essa relação com as comunidades. Elas nunca se prepararam para ter uma ação com o Estado brasileiro, muitas ainda não estão estruturadas. Vai ter um tempo, mesmo, e vão perdurar as que têm interesse e que vão se ajustar. Vamos orientar, mas vamos ser muito rigorosos na cobrança. Os problemas com ONGs em vários ministérios levaram a uma série de medidas.



Isso atrapalhou a liberação do dinheiro para as comunidades?



Não atrapalhou. Não faremos nenhum convênio se não for objeto de um edital público de seleção. Deve haver pelo menos três anos de atividades. Os contratos de repasses devem ser com entidades sem fins lucrativos, assinados por um ministro de Estado. Os pagamentos são por ordem bancária, não há nenhum pagamento que não fique registrado. A (Controladoria Geral da União) CGU acompanha de perto. Há ainda outros requisitos: segurança sanitária estabelecida pela Anvisa, comunicação formal de cada acolhimento, articulação com o sistema SUS, impossibilidade de ações de contenção física ou isolamento, acesso à comunicação com a família, vistorias por conselhos municipais. É um processo mais demorado. Quando começarmos a termos os convênios haverá a prestação de um serviço de qualidade às pessoas.



O edital do Ministério da Saúde, ao prever equipes médicas nas comunidades terapêuticas, perdeu o sentido?



Continua valendo, tanto que estão soltando outro edital. Há clínicas particulares que podem atender, que são equipadas e que e não estão na rede. Com os equipamentos de saúde, o regramento é muito mais severo. Essas entidades fazem tratamento de saúde, é diferente.



Na Cúpula das Américas na Colômbia, em 2012, a presidente Dilma se comprometeu com a discussão de cenários da legislação de drogas. A senhora é favorável ou contrária à descriminalização do uso de drogas?



Sou contrária à descriminalização das drogas. Às vezes pode parecer dar resultado, se formos analisar em relação ao tráfico. Já vi muitos argumentos dizendo que enfraqueceria o tráfico. Mas necessariamente não enfraquece o impacto na vida das pessoas. Legalizar uma droga não quer dizer que minora o problema. Pode ser uma solução simplista. Hoje, uma das drogas mais motivadoras de violência no trânsito, em casa, contra as mulheres e crianças é o álcool. Temos de fazer campanhas periódicas falando do problema do álcool no trânsito.



Mas o álcool é uma droga legalizada. O que mais se discute em relação a drogas como a maconha é descriminalizar o uso e continuar a penalizar a venda, o tráfico.



A nossa legislação já prevê a diferenciação. O ministro José Eduardo Cardozo recebeu os autores do projeto e foi bastante firme em dizer a proposição do governo. Não aceitamos elevar a pena. Temos de ter foco no traficante.



A ideia de aumentar apenas a punição dos grandes traficantes, como propõe o Ministério da Justiça, é o que o governo defende?



Essa é a posição do governo.



A senhora é contrária à descriminalização, mas o governo continua a discutir esse cenário no Conselho Nacional sobre Drogas (Conad)?



Isso está no âmbito do Ministério da Justiça.



O acordo para as mudanças no projeto de lei a ser votado na Câmara já está bem amarrado?



Fizemos um esforço muito grande para discutir o projeto e dar uma resposta à sociedade. O Congresso Nacional e o governo têm essa preocupação. Cada um tem as suas convicções e olha o problema de uma maneira. Não é um tema fácil, mas não é porque é polêmico e difícil que vamos deixar de enfrentar, de fazer um programa que atenda o que a população requer hoje de nós. Fizemos um grande esforço de consertação desse projeto. O relator cedeu, o governo também avaliou alguns pontos, colocou na mesa. Pode ser que nem tudo esteja de acordo, mas acredito que os grandes temas vão ser acordados.



A presidente pode vetar algum ponto?



.A possibilidade de veto é uma prerrogativa constitucional da presidenta, sempre pode. Mas sobre o projeto é prematuro falar o que vai ser o resultado final da votação. Aquilo que nós acordarmos, com certeza, não será vetado.